RESENHA CRÍTICA: A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E O VALOR PROBATÓRIO DA PALAVRA DA VÍTIMA NOS CRIMES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS.
- DIEGO PITREZ
- 13 de mai.
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Introdução.
A violência doméstica e familiar contra a mulher representa uma chaga social persistente e complexa, demandando do sistema de justiça criminal respostas céleres e eficazes.
Nesse cenário, a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, surge como um marco legislativo fundamental, buscando não apenas punir os agressores, mas também proteger as vítimas e prevenir futuras agressões.
Contudo, a aplicação dessa legislação no cotidiano forense suscita debates acalorados, especialmente no que tange à valoração da prova e ao respeito às garantias constitucionais do acusado.
Um dos pontos nevrálgicos dessa discussão reside na tensão entre o princípio da presunção de inocência, pilar do Estado Democrático de Direito, e o peso frequentemente atribuído à palavra da vítima nesses delitos, muitas vezes cometidos na clandestinidade, sem a presença de testemunhas oculares.
Esta resenha crítica propõe-se a analisar, sob uma perspectiva jurídica e crítica, como essa dinâmica probatória tem sido tratada pela doutrina e jurisprudência pátrias, investigando os riscos de uma eventual flexibilização ou inversão do princípio da presunção de inocência em nome da necessária proteção à mulher em situação de violência.
1. A Presunção de Inocência como Garantia Fundamental no Processo Penal Brasileiro.
O princípio da presunção de inocência, ou de não culpabilidade, está consagrado no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de 1988, que estabelece que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".
Trata-se de uma das mais importantes garantias individuais em um Estado Democrático de Direito, irradiando seus efeitos por todo o sistema processual penal.
Conforme leciona Aury Lopes Jr. (2020, p. 185), a presunção de inocência possui duas dimensões principais: uma regra de tratamento, que impede que o acusado seja tratado como culpado antes da condenação definitiva, e uma regra probatória, que impõe o ônus da prova integralmente à acusação.
O Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/1941), em seu artigo 156, primeira parte, reflete essa regra probatória ao dispor que "a prova da alegação incumbirá a quem a fizer". Interpretado à luz da Constituição, este dispositivo deixa claro que compete ao Ministério Público, ou ao querelante, demonstrar, de forma inequívoca e para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado.
Como bem pontuou o ex-ministro Celso de Mello, em célebre voto no HC nº 83.947/AM, "não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado" (BRASIL, 2004).
A estrutura acusatória do processo penal, reforçada pela Lei nº 13.964/2019 ao introduzir o artigo 3º-A no CPP, também se alinha a essa premissa, separando as funções de acusar, defender e julgar, e vedando a iniciativa probatória do juiz na fase de investigação ou a substituição da atuação do órgão acusador.
Nesse contexto, qualquer interpretação ou prática processual que, mesmo sutilmente, transfira ao réu o encargo de provar sua inocência ou que mitigue o standard probatório exigido para uma condenação, representa uma afronta direta a esta garantia fundamental.
2. A Palavra da Vítima nos Crimes de Violência Doméstica: Relevância e Limites Probatórios.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) foi um divisor de águas no enfrentamento da violência doméstica e familiar, reconhecendo a vulnerabilidade da mulher nesse contexto e estabelecendo mecanismos para sua proteção integral.
Um dos aspectos processuais mais debatidos refere-se ao valor probatório da palavra da vítima. Dada a natureza frequentemente clandestina desses delitos – ocorrendo, em regra, no âmbito privado, longe dos olhares de terceiros – a jurisprudência consolidou o entendimento de que o depoimento da ofendida assume especial relevância.
Conforme posicionamento recorrente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e de diversos Tribunais Estaduais, como o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), a palavra da vítima, se firme, coerente e harmônica com os demais elementos probatórios, pode ser suficiente para embasar um decreto condenatório (BRASIL, STJ, 2025; BRASIL, TJDFT, 2025).
Essa orientação jurisprudencial busca evitar a impunidade em crimes de difícil comprovação por outros meios. Como destaca Tormena (2022), desmerecer a palavra da ofendida sem justificativa plausível poderia estimular a prática de crimes dessa natureza.
No entanto, o mesmo autor e a própria jurisprudência alertam para os perigos de uma supervalorização acrítica do depoimento da vítima.
O Código de Processo Penal, em sua exposição de motivos, é claro ao afirmar que "todas as provas são relativas; nenhuma delas terá, ex vi legis, valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outra" (BRASIL, 1941). O juiz, ao formar sua convicção, deve realizar uma livre apreciação da prova (art. 155, CPP), mas essa liberdade não é sinônimo de arbitrariedade e não pode se sobrepor às garantias constitucionais.
A doutrina processual penal crítica, a exemplo de Badaró (2020, p. 234) e Távora e Alencar (2021, p. 156), ressalta que a ação penal não pode ser uma "aventura irresponsável", exigindo um lastro probatório mínimo para sua deflagração e, com maior razão, para uma condenação.
A mera declaração da vítima, isolada nos autos e desprovida de qualquer outro elemento, mesmo que indiciário, que a corrobore, não pode, sob pena de violação à presunção de inocência, ser considerada suficiente para subverter o estado de inocência do acusado.
O STF, no RHC 187.976/DF, embora reconhecendo a especial relevância da palavra da vítima, foi categórico ao afirmar que, se isolada no contexto probatório e havendo dúvida razoável, impõe-se a aplicação do princípio do in dubio pro reo (BRASIL, STF, 2020).
3. A Tensão entre a Proteção da Vítima e a Presunção de Inocência: Desafios e Perspectivas Críticas.
O cerne da questão reside em encontrar um equilíbrio entre a imperiosa necessidade de proteger a mulher em situação de violência doméstica, garantindo-lhe acesso à justiça e punição aos agressores, e a intransigente observância das garantias fundamentais do acusado, notadamente a presunção de inocência e o direito a um processo penal justo, com o ônus da prova recaindo exclusivamente sobre a acusação.
A Lei Maria da Penha, em seu artigo 4º, orienta que sua interpretação deve considerar "os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar".
Essa diretriz, contudo, não autoriza o sacrifício de princípios constitucionais basilares. A prática forense, por vezes, revela uma tendência à flexibilização da presunção de inocência em casos de violência doméstica, onde a palavra da vítima, mesmo sem corroboração robusta, assume um peso desproporcional.
Essa "hipertrofia valorativa", como critica Tormena (2022), pode levar a uma inversão de fato do ônus probatório, exigindo que o acusado produza uma "prova diabólica" de sua inocência.
Tal cenário é incompatível com o sistema acusatório e com a dignidade da pessoa humana, que também se estende ao réu. É fundamental que o julgador, ao analisar casos de violência doméstica, adote uma postura de especial sensibilidade para com a vítima, mas sem abdicar de seu dever de garante dos direitos fundamentais do acusado.
A palavra da vítima deve ser colhida com as devidas cautelas, buscando-se, sempre que possível, elementos de corroboração, como laudos periciais (art. 12, IV, LMP), registros de ocorrências anteriores, mensagens, depoimentos de informantes (familiares, vizinhos, ainda que não presenciais do fato específico, mas que possam contextualizar a relação), entre outros.
A ausência completa de qualquer adminículo probatório que sustente a versão da vítima, por mais crível que esta pareça, deve conduzir à absolvição, em respeito ao art. 386, VII, do CPP (não existir prova suficiente para a condenação).
A busca por uma justiça efetiva para as vítimas de violência doméstica não pode se dar ao custo da relativização de garantias que são conquistas civilizatórias. A solução não reside em diminuir o standard probatório, mas em aprimorar os mecanismos de investigação, fortalecer as redes de apoio às vítimas para que se sintam seguras em denunciar e colaborar com a produção de provas, e capacitar os operadores do direito para uma análise probatória criteriosa e equânime.
Conclusão.
A complexa relação entre a presunção de inocência e o valor da palavra da vítima nos crimes de violência doméstica exige uma reflexão contínua e aprofundada por parte de todos os operadores do Direito.
Se, por um lado, a palavra da ofendida possui inegável relevância probatória, dada a natureza peculiar desses delitos, por outro, sua supervalorização acrítica, em detrimento das garantias constitucionais do acusado, pode configurar uma perigosa inversão dos pilares do processo penal democrático.
A jurisprudência dos tribunais superiores, embora reconheça a importância do depoimento da vítima, tem sinalizado a necessidade de sua corroboração por outros elementos de prova, ainda que mínimos, para a formação de um juízo condenatório seguro.
A doutrina crítica, por sua vez, alerta para os riscos de uma flexibilização da presunção de inocência e da inversão do ônus probatório.
Em última análise, a efetivação da justiça nos casos de violência doméstica perpassa pelo fortalecimento dos mecanismos de produção probatória e pela atuação criteriosa do Poder Judiciário, que deve sopesar, com a devida sensibilidade e rigor técnico, todos os elementos carreados aos autos, assegurando a proteção integral à vítima sem, contudo, comprometer o estado de inocência do acusado, que só pode ser afastado diante de um conjunto probatório robusto e inequívoco de sua culpabilidade.
Referências Bibliográficas.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 2.769.428/BA. Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Quinta Turma. Julgado em 18 fev. 2025. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 06 mar. 2025.
Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 83.947/AM. Relator: Min. Celso de Mello. Julgado em 24 de agosto de 2004. Diário da Justiça, 03 set. 2004.
Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 187.976/DF. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Primeira Turma. Julgado em 30 jun. 2020. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 03 jul. 2020.
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Relevância da palavra da vítima - crimes em contexto de violência doméstica. Pesquisa atualizada em 13/03/2025. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/lei-maria-da-penha-na-visao-do-
Diego Pitrez
OAB/RS 65.478
Advogado e Consultor Jurídico







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